sábado, 25 de maio de 2013

o afeto e a afetividade

Uma criança. Um quadrilátero com lados diferentes. Um cadeira. Várias delas, enfileiradas. Várias crianças.
Um dia, pensei em ser mãe. Solteira, casada, namorando, com um caso, isso pra mim nunca foi minha preocupação. Só queria ser mãe. 
Desde adolescente sinto uma empatia incrível por crianças, nunca me esqueço que ensinei as primeiras palavras escritas para o meu irmão, em casa. A soletrar, formar as sílabas e ler e dizer o que estava no papel mimiografado, que trouxe da escola, em um dia que a professora jogava fora exercícios que não serviam mais pra gente.
Cresci e passei por uma cirurgia. Depois por outra. Nesta última, sem eu saber, tiraram um dos meus ovários. Naquele momento, só queria saber da minha saúde, e se estava comprometido, deveria tirar mesmo. Aliás, penso isso até hoje. Lamento não ter sido comunicada, e ainda de ter descoberto isso somente na cama da cirurgia, desacordada. E ser comunicada após a intervenção, reacordando no quarto. Lamento que quem teve que falar sim para a retirada foram meus pais, que nunca tiveram a noção real e exata da minha ansiedade por ser mãe.
Pois bem, passaram-se os anos, e sinto a diferença, a cada mês que se passa, com a falta de um dos ovários. Pesquisei e descobri que não poderei nunca ter filh_s gême_s não idênticos, e que ainda, muito provavelmente, eles serão do mesmo sexo, se a sorte, muita sorte, permitir que isso aconteça.
Descobri também que terei dificuldades em engravidar, 50% a menos de chance em todas as tentativas. Resolvi inverter e sempre penso que são 50% de chances de engravidar.
Provavelmente não terei um parto normal. As duas cirurgias, em um curto período, deixaram a região do útero bastante sensíveis. Assim como não posso fazer muito esforço físico (sinto dores descomunais) e não posso receber uma pancada na região do corte.
Corte este que é como uma cesária. Igualzinho. Passei por ela duas vezes, e a última com direito à uma plástica reparadora. A dor do corte a gente supera em 10 dias, 1 semana. No segundo dia a gente consegue andar, comer, tudo normalzinho, depois dos 10 dias, já conseguimos levar uma vida normal. Posso dizer que já superei dois pós operatórios, não pela complexidade cirúrgica, mas por se assemelharem às cesárias.
Pois bem, hoje sou professora, solteira, sem namorados, casos, amores, nada. Professora. Me apeguei aos meus alunos, e quando chego em casa, não desejo mais ter filhos. Fico pensando em que mundo colocá-lo, que educação ele vai receber, o que é ser filh_ de uma mãe de esquerda, que luta, que escreve sobre moradia, que estuda geografia e direito, que está nas ruas, que defende a moradia digna, e que sonha. Sonha com um mundo diferente, sem as diferenças de hoje. Penso muito, se meu-minha filh_ será caçoad_ pelos colegas por ser diferente, por não desejar coisas para além do que precisamos ter para viver. Penso muito se el_ pensará assim, se ele vai agira assim, se vai ser simples, colega, amig_, companheir_. E perdi a vontade de ser mãe.
Pelo menos agora, vendo meus alunos toda semana, canalizo todas as minhas afeições às eles. Cobro os cadernos, cobro as cópias, escrevo bilhetes para as mães e pais nos cadernos, deixo recados nas provas e avaliações. Abraço e beijo quem vem me abraçar e pedir beijos. Trato com diferença aqueles que não se adaptam à rotina de uma escola chata. Todos ali são meus queridos.
A invasão no meu corpo com a retirada do ovário, o congelamento de uma vontade de ser mãe e a escola, cheia de cabeças pensantes em algum futuro, com expectativas, revoltas e mesmices, me fizeram refletir sobre o nosso papel enquanto construtora de uma nova realidade. Que precisa de novas pessoas, mas que não recebe-as de maneira humana.

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Lígia Souza Petrini
 
Geografia | USP

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